sexta-feira, agosto 12, 2016

#105 *Lausanne, Novembro 2011

A indecisão apareceu para jantar. Invadiu aquele lugar qual corrente de ar fria, sorrateira, deslocando-se entre a porta e a janela, instalando-se em corrupio entre os rostos aquecidos de sopa e tinto.
A confrontação propositada entre o quente e o frio não deixava porem margem para indecisões, salvo as requeridas quando de jogo se trata, esse que se conta em detalhes, esse que obriga à descoberta, esse que nos levava a lado algum.
Ficámos ali perdidos na tradução de um idioma que não nos pertencia. Ali permanecemos sem nos nos encontrarmos nos dialetos, do ingénuo romantismo à pretensiosa pornografia. Um equação mal calculada entre variáveis inexistentes, invadida por somas de sinais trocados. Um exercício para crentes. Olha o mau aluno na sua patética aritmética.
Ias-te rindo da sua sincera inocência, perpetuavas essa indecisão.

(Mais uma vez a sua alma entregara-se à ausência, abraçando-a num silêncio homenageando as suas existências desumanas)

terça-feira, outubro 25, 2011

#104 * Piromania

Abriu os olhos e deixou-os percorrer a cave em penumbra. Por momentos não quis identificar esse lugar.
- Onde está Ela?
Uma brecha luminosa despertara-lhe a dor. Tentou disfarçá-la com desculpas de que um eventual acidente ocorrera mas estava consciente do equívoco, aliás era demasiado evidente para que de um acidente se tratasse, embora tivesse sido ali que a poeira cobrira, num momento dificilmente mensurável em unidades de tempo, a clarividência das suas certezas. Era ainda assim uma dor conhecida, poeira e fumo que sufocavam.
(quem brinca com o fogo queima-se)
Tentou então levantar-se, gesto negado em tom imperativo pela alma, mais que pelo corpo. Involuntariamente como se estivessem a tentar apagar as últimas labaredas de um fogo que não ardera e lamberem-lhe as chagas, essas sim, por ora ardentes, as suas órbitas inundaram-se em lágrimas que trilharam o seu rosto para caírem desamparadas no cinzeiro como se de chuva se tratassem. A poeira baixara.
Voltou a cerrar as pálpebras, cuja espessura da derme não se compreende quando tão vital órgão pretendem proteger mas, desta vez, porém, não quis dormir, não quis fugir, procurava fundo aquela memória já antiga, como cábula de testes matinais.
- Perdeste a razão, como daquela vez, aliás, perdes sempre propositadamente?
Num gesto que os românticos atribuiriam aos fracos, mas que receberia notas e louvores de habilidade entre os que da massa cinzenta julgam deter supremo conhecimento, lembrou-se de Amelie, dos significados que aos detalhes devem ser atribuídos, sabendo assim que o porquê nunca existiu permitindo-se então largar a dor.
Acendeu um cigarro, fogo, fumo, e num gesto de irracionalidade lembrou-se da ausência, um incêndio muito mais difícil de extinguir.

quarta-feira, outubro 12, 2011

#103 *Inquietação

Foram 3 meses de algo que pairava, sem se saber o porquê. O verão não estava, teimava em não vir como se quisesse mostrar-lhes que era assim que devia, entre tempestades e calmarias, agitar-lhes os pensamentos. Inquietação pensou. Ele procurava o Seu bom dia em silenciosa inquietação. Durante 3 meses era Ela a sua trovoada matinal antes das nuvens caírem à tarde sobre o lago, e de o céu transpirar toda aquela inquieta precipitação e continuar a gritar noite dentro. Ela era toda agitação, a azáfama dos copos e cafés largava-se num sorriso que acalmava o tilintar dos trovões em manhãs de céu claro.
E assim se passaram 3 meses de neblinas sem que algum significado pudesse ser atribuído a toda aquela inquieta agitação, se é que neste momento algum se possa atribuir. Até as plantas do vizinho desabrochavam em Outono, e o de odor firme penetravam as janelas abertas do calor que o verão indiano trouxera. Mas ele tampouco queria saber das plantas do vizinho muito menos do calor, esse incómodo ser. E assim enquanto de tons de sépia se despiam as árvores e a neblina se levantava, ele entrava pela porta do café, para ver começar a chover lá fora.
Os copos pararam de trovejar, para dar lugar a mais inquietação.

quinta-feira, novembro 25, 2010

#102 *Miroir

Sonho após sonho
encostas a cabeça ao cobertor
desfazes a mesa do escritório
até engolires o despertador
- Onde andas tu minha insónia de realidade?
Vem cortar-me as asas
trazer-me de volta à puberdade

Encostas-te ao chão
e algemas-te nas visões
Pões essa camisa de forças
à volta das tuas ilusões
Pediste um momento de solidão
entre o mar e o sal
serviste-te um copo de loucura
bebeste de um veneno mortal

Até logo à noite vais-te misturar nas sombras
Estender-te ao relento soterrado pelos escombros
Abres a porta dos sonhos e sobes o elevador
Entregas-te ao vazio
Embates contra a tua imagem
E é ela quem te lembra a dor.

sábado, julho 10, 2010

#101 *A caminho do sono

Deixo que alma se inquiete a caminho do sono. Percorro novamente os passos que dei hoje, construindo o trilho do dia seguinte e embora não reduza a tarefa ao dia-a-dia deixo os grandes projectos beber no curso da madrugada.
Sou assim como os Homens, como aqueles que não aceitam, que não se reduzem à explicação na ausência da mesma. Não sou céptico nem ateu, embora já tenha vestido, talvez por engano ou ignorância, a camisola do agnosticismo. considero-me um crente nas coisas belas, recorrendo às feias nessa aprendizagem. Afinal somos isso mesmo, belos, feios, humanos, transcendentais.
Ainda acordado constato que a sombra de gesso cartonado acompanha-me no silêncio desta minha meditação. Parto em busca do lençol para prevenir o adormecimento da carne, já em paz, por saber que amanhã é mais um dia em busca do meu oriente.

(07.07.2010)

segunda-feira, junho 28, 2010

#100 *Hoje (mais de 365 dias depois)

Hoje apetece-me saborear lágrimas de felicidade.
Hoje apetece-me voltar a escrever sobre todas as coisas.
Hoje assassino a ausência nas tuas lágrimas que descem, lentas e emocionadas, por esses dois globos azuis que se misturam nas cores do lago.
Hoje comovo-me com a re-descoberta e apago as sombras de mim.
Hoje desfaço-me do medo de ser quem sou, esse medo que esconde o evidente e se encosta numa cadeira, para beber um copo com a futilidade e o comodismo.
Hoje tatuo um ponto final, começo um novo discurso composto das palavras antigas, acendo um cigarro para por uma virgula e agradecer-te por veres e me fazeres ver.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

#99 *No silêncio dos crentes

Deixo-me levar no altruísmo das tuas palavras. Deixo que me olhes assim. E mesmo que não deixe, tu olhas-me, assim.
Entre as doces gotas de absinto confias-me certeza. Entre músicas e vozes soltas-me um aroma. Entre guitarras e ruas inclinadas voltas à certeza.
Ofereces-me uma dança servida em caneca de cerveja, gelada. Queimas-me a cera e eu corro. Entro no meu mundo de divisórias e não te vejo. Em realidade não vejo nada.
Acendo a luz e assim a deixo, vestida, destapada. Telefono, caio, adormeço, sem tempo, sem espaço. Para acordar e saber que a certeza é a madrasta dos crentes.