terça-feira, outubro 25, 2011

#104 * Piromania

Abriu os olhos e deixou-os percorrer a cave em penumbra. Por momentos não quis identificar esse lugar.
- Onde está Ela?
Uma brecha luminosa despertara-lhe a dor. Tentou disfarçá-la com desculpas de que um eventual acidente ocorrera mas estava consciente do equívoco, aliás era demasiado evidente para que de um acidente se tratasse, embora tivesse sido ali que a poeira cobrira, num momento dificilmente mensurável em unidades de tempo, a clarividência das suas certezas. Era ainda assim uma dor conhecida, poeira e fumo que sufocavam.
(quem brinca com o fogo queima-se)
Tentou então levantar-se, gesto negado em tom imperativo pela alma, mais que pelo corpo. Involuntariamente como se estivessem a tentar apagar as últimas labaredas de um fogo que não ardera e lamberem-lhe as chagas, essas sim, por ora ardentes, as suas órbitas inundaram-se em lágrimas que trilharam o seu rosto para caírem desamparadas no cinzeiro como se de chuva se tratassem. A poeira baixara.
Voltou a cerrar as pálpebras, cuja espessura da derme não se compreende quando tão vital órgão pretendem proteger mas, desta vez, porém, não quis dormir, não quis fugir, procurava fundo aquela memória já antiga, como cábula de testes matinais.
- Perdeste a razão, como daquela vez, aliás, perdes sempre propositadamente?
Num gesto que os românticos atribuiriam aos fracos, mas que receberia notas e louvores de habilidade entre os que da massa cinzenta julgam deter supremo conhecimento, lembrou-se de Amelie, dos significados que aos detalhes devem ser atribuídos, sabendo assim que o porquê nunca existiu permitindo-se então largar a dor.
Acendeu um cigarro, fogo, fumo, e num gesto de irracionalidade lembrou-se da ausência, um incêndio muito mais difícil de extinguir.

quarta-feira, outubro 12, 2011

#103 *Inquietação

Foram 3 meses de algo que pairava, sem se saber o porquê. O verão não estava, teimava em não vir como se quisesse mostrar-lhes que era assim que devia, entre tempestades e calmarias, agitar-lhes os pensamentos. Inquietação pensou. Ele procurava o Seu bom dia em silenciosa inquietação. Durante 3 meses era Ela a sua trovoada matinal antes das nuvens caírem à tarde sobre o lago, e de o céu transpirar toda aquela inquieta precipitação e continuar a gritar noite dentro. Ela era toda agitação, a azáfama dos copos e cafés largava-se num sorriso que acalmava o tilintar dos trovões em manhãs de céu claro.
E assim se passaram 3 meses de neblinas sem que algum significado pudesse ser atribuído a toda aquela inquieta agitação, se é que neste momento algum se possa atribuir. Até as plantas do vizinho desabrochavam em Outono, e o de odor firme penetravam as janelas abertas do calor que o verão indiano trouxera. Mas ele tampouco queria saber das plantas do vizinho muito menos do calor, esse incómodo ser. E assim enquanto de tons de sépia se despiam as árvores e a neblina se levantava, ele entrava pela porta do café, para ver começar a chover lá fora.
Os copos pararam de trovejar, para dar lugar a mais inquietação.