#104 * Piromania
Abriu os olhos e deixou-os percorrer a cave em penumbra. Por momentos não quis identificar esse lugar.
- Onde está Ela?
Uma brecha luminosa despertara-lhe a dor. Tentou disfarçá-la com desculpas de que um eventual acidente ocorrera mas estava consciente do equívoco, aliás era demasiado evidente para que de um acidente se tratasse, embora tivesse sido ali que a poeira cobrira, num momento dificilmente mensurável em unidades de tempo, a clarividência das suas certezas. Era ainda assim uma dor conhecida, poeira e fumo que sufocavam.
(quem brinca com o fogo queima-se)
Tentou então levantar-se, gesto negado em tom imperativo pela alma, mais que pelo corpo. Involuntariamente como se estivessem a tentar apagar as últimas labaredas de um fogo que não ardera e lamberem-lhe as chagas, essas sim, por ora ardentes, as suas órbitas inundaram-se em lágrimas que trilharam o seu rosto para caírem desamparadas no cinzeiro como se de chuva se tratassem. A poeira baixara.
Voltou a cerrar as pálpebras, cuja espessura da derme não se compreende quando tão vital órgão pretendem proteger mas, desta vez, porém, não quis dormir, não quis fugir, procurava fundo aquela memória já antiga, como cábula de testes matinais.
- Perdeste a razão, como daquela vez, aliás, perdes sempre propositadamente?
Num gesto que os românticos atribuiriam aos fracos, mas que receberia notas e louvores de habilidade entre os que da massa cinzenta julgam deter supremo conhecimento, lembrou-se de Amelie, dos significados que aos detalhes devem ser atribuídos, sabendo assim que o porquê nunca existiu permitindo-se então largar a dor.
Acendeu um cigarro, fogo, fumo, e num gesto de irracionalidade lembrou-se da ausência, um incêndio muito mais difícil de extinguir.