terça-feira, outubro 25, 2011

#104 * Piromania

Abriu os olhos e deixou-os percorrer a cave em penumbra. Por momentos não quis identificar esse lugar.
- Onde está Ela?
Uma brecha luminosa despertara-lhe a dor. Tentou disfarçá-la com desculpas de que um eventual acidente ocorrera mas estava consciente do equívoco, aliás era demasiado evidente para que de um acidente se tratasse, embora tivesse sido ali que a poeira cobrira, num momento dificilmente mensurável em unidades de tempo, a clarividência das suas certezas. Era ainda assim uma dor conhecida, poeira e fumo que sufocavam.
(quem brinca com o fogo queima-se)
Tentou então levantar-se, gesto negado em tom imperativo pela alma, mais que pelo corpo. Involuntariamente como se estivessem a tentar apagar as últimas labaredas de um fogo que não ardera e lamberem-lhe as chagas, essas sim, por ora ardentes, as suas órbitas inundaram-se em lágrimas que trilharam o seu rosto para caírem desamparadas no cinzeiro como se de chuva se tratassem. A poeira baixara.
Voltou a cerrar as pálpebras, cuja espessura da derme não se compreende quando tão vital órgão pretendem proteger mas, desta vez, porém, não quis dormir, não quis fugir, procurava fundo aquela memória já antiga, como cábula de testes matinais.
- Perdeste a razão, como daquela vez, aliás, perdes sempre propositadamente?
Num gesto que os românticos atribuiriam aos fracos, mas que receberia notas e louvores de habilidade entre os que da massa cinzenta julgam deter supremo conhecimento, lembrou-se de Amelie, dos significados que aos detalhes devem ser atribuídos, sabendo assim que o porquê nunca existiu permitindo-se então largar a dor.
Acendeu um cigarro, fogo, fumo, e num gesto de irracionalidade lembrou-se da ausência, um incêndio muito mais difícil de extinguir.

4 Comments:

Blogger Vítor Fernandes said...

Estás um escritor. Romântico e dramático. Classifico com o Bom+. Ao teu estilo!

11:50 da tarde  
Blogger Janita said...

JC,
acredito que sintas necessidade de transmitir. Sente-se que aquilo que escreves te sai da alma.
Leio-te, volto atrás, relei-o e não é porque não te compreenda, acho que há um prazer quase mórbido de sentir a dor que dizes sentir. Talvez porque esse incêndio que a ausência provoca, também eu o conheça bem.
Ainda que intermitentemente virei sempre receber aquilo que transmitires.
Obrigada por teres respondido ao meu comentário anterior.
Nem eu esperava outra coisa senão ler-te a ti e somente a ti.
Um beijo
Janita

1:30 da manhã  
Blogger JC said...

Pai, obrigado. tenho um progenitor como um dos meus mestres.

Janita, a dor descrita nos meus textos é quase sempre a da presença, e essa sim tem para mim pelo menos um prazer enorme, ao contrário da ausência cuja dor é, como digo, um incêndio muito mais difícil de extinguir e cujos raros escritos se podem ver nesta série chamada vazios:
http://breakitfast.blogspot.com/2006_04_01_archive.html
http://breakitfast.blogspot.com/2006_05_01_archive.html

10:41 da manhã  
Blogger Janita said...

JC,
sinto-me muito honrada e agradeço-te, reconhecida, a distinção que me fazes.
Já lá estive e te deixei a minha modesta opinião.
Não sei se preciso dizer-te, mas senti-me emocionada.
Ainda dizes que não te consideras um escritor, porque não crias!
Há lá melhor criatividade do que o manifesto, em palavras tão belas, daquilo que nos vai na alma?
Beijinhos e esforça-te por ser feliz!
Janita

1:54 da tarde  

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